sábado, dezembro 23, 2006

A Revelação

Almoço de uma uma família classe média comum. Pai, mãe, o filho mais velho, o filho do meio e o bebê.

A conversa gira sobre o trivial simples, assuntos leves, bem apropriados para a hora do almoço: conflito no Oriente Médio, o aumento nos salários dos deputados, a crise na aviação, o cara que morreu atropelado na Cristiano Machado...

De repente, o filho mais velho, que normalmente almoça em silêncio, dá um murro na mesa e faz a revelação:

- Eu sou pagodeiro!

Por um interminável minuto ninguém fala nada, só olham para a criatura como se tivesse brotado antenas em sua cabeça.

Passado o primeiro momento, a mãe começa a chorar convulsivamente, gritando "Meu coração... Meu coração..." e o irmão do meio a soltar risinhos abafados. O bebê continua com o estava, se lambuzando com a comida. O pai se levanta de sopetão, joga o prato na parede e começa a gritar:

- Eu não aceito isso!!! Eu não aceito isso!!!

O pagodeiro tenta acalmar os ânimos:

- Pai, calma, por favor! Isso não é o fim do mundo e...

- Não é o fim do mundo? Não é o fim do mundo???? O que poderia ser pior? Ser pagodeiro E sertanejo? E funkeiro? Isso é o fim do mundo sim! Isso é o fim do mundo pra caralho!!! Onde foi que eu errei? Eu fiz tudo certinho, dei discos de rock, gastei horas ensinando as letras do Deep Purple para esse degenerado, levei no show dos Rolling Stones.... paguei intercâmbio para Liverpool!!! Era para esse bosta gostar de Beatles!

- Pai, eu sempre quis te contar. Eu não gosto de Beatles. Eu gosto do Netinho!!! Eu gosto é de ir a bar de pagode! Eu sou um pagodeiro excelente. Sei fazer umas quatro coreôs diferentes. Sou eu que invento as dancinhas do nosso grupo, o Tchacatchacanabutchaca!

- Tchacatch... seu merdinha da porra ! - o pai dá um pescotapa no pagodeiro - E a coleção de CDs do Queen? Os vinis raros do The Who que eu te dei no seu aniversário de 18 anos?

- Pai, eu ia te contar...Eu leiloei no e-bay para poder gravar nosso primeiro CD. Ficou muito bom, pai! Você não pode julgar antes de ouvir. Tenho certeza que quando você ouvir você vai gostar.

O irmão do meio, que já tinha se revelado rapper no ano anterior e era, até então, considerado a ovelha negra da família, começa a rir mais alto.

- Eu não tenho mais filho!! Você não é mais meu filho!! Você vai embora dessa casa ainda hoje!

- Mas, pai...

- E não me chama de pai!

O bebê passa a papinha no cabelo, distraidamente.

A mãe, que até então só chorava, resolve se manifestar. Dirige-se, furiosa, ao pai:

- A culpa é sua! Eu falei para você conversar com ele quando ele ficou batucando naquela caixinha de fósforo! Eu falei!

- Agora a culpa é minha? É você que fica em casa! Você viu quando ele pintou os cabelos de loiro e não falou nada! Disse para mim que roqueiro também fazia dessas coisas!!

O pagodeiro, tentando se defender, diz:

- A culpa é de vocês dois. Vocês têm CDs de samba aqui em casa.

A mãe e o pai gritam juntos:

- É CARTOLA, SEU BOSTA!!!

Nesse ponto da conversa, Dona Ceição, que trabalha com a família há muitos anos e emprestou os primeiros CDs do Raça Negra para o menino, teve que ligar para a polícia, porque aconteceu um acidente com a faca de carne que estava na mão do pai. Por sorte, o socorro chegou a tempo e o pagodeiro passa bem.

4 comentários:

Anônimo disse...

maigodi ! ri muito . um terere foi demais a emocao perdoa paixao...

gigi disse...

ai, ju... olha a intolerância! fico meio preocupada com acepções xiitas a respeito de gosto. tudo bem, né, todos temos nossas preferências, mas qual é o limite? será que a demarcação de fronteiras nos impede de dançar um whisky a gô gô em final de festa de casamento?

beijinho.

Anônimo disse...

Simplesmente sensacional!

Juliana A.B.F. disse...

Gigi, dançar whisky a gô gô faz parte do fim de festa de casamento... principalmente se se estiver alguns whiskys acima do resto da humanidade. Nada contra contra quem gosta de pagode, sertanejo, funk... Eu não gosto e é só uma opinião. Mas que eu gostei de escrever essa estorinha, isso eu gostei.