terça-feira, agosto 13, 2013

Conto doméstico

- Mãe, cadê a blusa azul do uniforme?

Essa é minha filha que me solicita. Todo dia é a mesma história: ela usou a blusa azul durante o dia anterior todo e não colocou para lavar. Eu lhe dou outra blusa, a branca e azul, que também é parte do uniforme. Mas essa ela não quer. Não é maneira. Ela quer a azul, a maneira, que está embolada em algum canto daquele muquifo fedido que ela chama de quarto.

- Mãezinha, o café ainda não está pronto? Assim você me atrasa.

Esse é o meu marido que me solicita. Todo dia é a mesma história: será que ele não entende que em não desenvolvi o superpoder de ebulir a água do café em três segundos, que é o tempo que me sobra depois de eu organizar o banho dele, colocar pasta na escova de dente dele, acender o cigarro dele (e eu nem fumo, hein?) arrumar a roupa de trabalho dele (terno cinza/ gravata chumbo/ camisa branca/ cinto e sapato preto ou terno azul/gravata vermelha/camisa azul claro/cinto e sapato preto ou qualquer outra dessas combinações elaboradas por ele que só servem para me deixar mais ocupada pela manhã).

Aos dois questionamentos – o dela e o dele – dou como resposta meu sorriso mais paciente, ensaiado um milhão de vezes na frente do espelho para evitar um palavrão, um grito ou uma crise de choro.

Termino de arrumar o café dele, a roupa dela, dou meus abraços e beijos matinais de bom dia. Bom dia! Bom dia! E eu eles se vão. E eu fico. Todo dia é a mesma história.

E eu fiquei. Como sempre. Eu nunca saio. A não ser para ir à feira, ao banco, ao supermercado. Nem estou reclamando, entenda. O tempo é realmente curto. E eu nunca reclamo de nada. Ele trabalha muito. Ela estuda muito. Eu que fico em casa, tenho mais é que fazer essas coisas, né?

Desde que ela nasceu sempre foi assim.

Houve um tempo que éramos eu e ele. E ele não me chamava de mãezinha. Para ele, eu era princesa. E ele me levava a lugares. E não falava que eu estava engordando. E não reclamava quando eu gastava um dinheirinho no salão. E notava meu vestido novo. E ria das minhas piadas. E não ria do fato de eu ter todos os discos do Sidney Magal.

Depois, em outra época, quando ela nasceu, éramos eu e ela. E eu gostei deste tempo. Ela me chamava de mamãe. E achava graça nas minhas graças. E confiava em mim. E não ria do fato de eu ter todos os discos do Sidney Magal.

Eu gostei desses dois tempos. Os dois se parecem. Quando erámos eu e ele, eu me encantava descobrindo seus pensamentos, gostos e manias. E eu era sua princesa e ele me levava a lugares.

Aí ela nasceu. Ele começou a me chamar de mãezinha e voltar tarde do escritório. Dizia que me chamava de mãezinha para a neném aprender a me chamar assim. Dizia que chegava tarde do trabalho porque tinha que ganhar mais dinheiro para sustentar nossa filha.

Mas ela era minha. Tão parecida com ele Meu encanto então era descobrir nelas os gestos, olhares, o jeito de sorrir. Tudo tão parecido com ele. Olhar para ela era como descobri-lo de novo. E ela era minha, tão linda, tão perfeita. E eu era tão importante na vida dela. E eu era sua heroína.

E então, um dia, não sei bem quando, eles pararam de olhar pra mim e se encontraram. E se reconheceram. Ela, uma miniatura dele. Ele, o vislumbre do adulto que ela seria. Encantaram-se um pelo outro daquele jeito que a pessoa se encanta por uma imagem de si mesmo em seu melhor dia, refletida num espelho bem generoso.

Nesse dia, eles se foram e eu fiquei.

Pensando bem, eles nem se foram mesmo. Eu é que nunca posso sair de casa. Tanta coisa para fazer. É tanta coisa que mesmo quando eles estão em casa, eu não estou com eles. Eles ficam na sala, conversando sobre as coisas ou assistindo a um programa e eu estou arrumando as coisas sempre. É muita coisa mesmo. Não me entenda mal, eu não estou reclamando. Eu não reclamo nunca. Não é como se eles não soubessem que eu existo; eles sabem que eu existo. Eu sou a pessoa que sabe onde estão as coisas na casa. Eu sou a pessoa que faz a comida e desenrola a burocracia doméstica. Sou eu quem acha o caderno perdido dela. Sou eu quem encontra a carteira e o celular dele dois segundos antes de ele estar irremediavelmente atrasado para a reunião de trabalho.

E também sou eu quem está sempre com o cabelo desarrumado porque não tem tempo de ir ao salão para cortar e pintar. Também, né? No dia que eu pintei de outra cor ele perguntou: ‘que bicho é esse no seu cabelo, mãezinha?’. Aí eu parei de pintar, né? E também porque passar tinta de cabelo no salão tá pela hora da morte. Dá para fazer sacolão duas vezes na semana com esse dinheiro. E também, né? Fazer a filha pagar mico? Quando eu pintei o cabelo ela disse que não era para eu ir busca-la na escola para ela não pagar mico. Então melhor deixar essa história de pintar cabelo, né?

Ah! E eles adoram falar: ‘isso é coisa da boba da mãezinha’. Assim, de forma carinhosa. Qualquer coisa eles dizem que ‘isso é coisa da boba da mãezinha’

Não foi sempre assim. Eles antes gostavam de me agradar. Quando ela era pequenininha, ela fazia desenhos para mim. Escrevia bilhetinhos dizendo: ‘mamãe, eu te amo’ E ele então? Era louco por mim. Até me levou uma vez num show do Sidney Magal. Eu contei pra você? Foi lindo, foi mágico. Dançamos. Rimos. Ele me levou no camarim e eu pude falar com o Magal em pessoa. Juro. O Magal perguntou até meu nome, acredita? Eu falei: “Helena” e o Magal falou: “nome de mulher bonita”. Ah, pra que! Ele ficou com ciúme do Magal. Voltou pra casa de cara fechada. Mas quando chegamos em casa, eu enchi ele de beijo e ele deixou pra lá essa bobagem de ciúme. Mas nunca mais me levou no show do Magal.

Ah! Falando em Magal, hoje eu estava tão feliz... eu tinha lido uma notícia sobre o Magal no jornal. Eu ia até contar para eles. Fiquei tão feliz que coloquei o CD do Magal para tocar.

Eu estava ouvindo o CD do Magal quando eles chegaram. Eu estava ouvindo Sandra Rosa Madalena. Eles chegaram juntos; ela da escola, ele do trabalho. Eu estava colocando o jantar na mesa e ouvindo Sandra Rosa Madalena. Eu estava até dançando um pouquinho. Eu fiz carne assada que ele ama e purê de batata que ela adora. Arroz e feijão e uma salada de alface e tomate para acompanhar. Um capricho, precisa ver. Queria agradar. Eu estava feliz demais. Eu estava cortando a carne e ela falou. “Ai, mãe, esse homem brega de novo?” E ele falou: “deixa dessa bobagem, mãezinha”.

Foi aí que eu não consegui me controlar. Cortei a garganta dos dois com a faca de carne.

Mas deixa eu te perguntar uma coisa: é verdade que o Magal vai fazer mesmo um show na penitenciária feminina? Olha só a notícia aqui. Eu trouxe até o recorte do jornal: ‘Sidney Magal fará show na Penitenciária Industrial Estevão Pinto’. É verdade, seu delegado?